quarta-feira, 29 de setembro de 2010

Dilúvio

...
"Reza, reza o rio
Córrego pro rio
Rio pro mar
Reza correnteza
Roça a beira
A doura areia...

Marcha um homem
Sobre o chão
Leva no coração
Uma ferida acesa
Dono do sim e do não
Diante da visão
Da infinita beleza...

Finda por ferir com a mão
Essa delicadeza
A coisa mais querida
A glória, da vida..."

-------------------------------------

Fico só observando e me admiro de ver.
Quem é essa?
De onde veio?
Espera, me explica!
O rio flui em águas fartas e rompe com a represa de anos.
Do alto da torre de comando só observo e desfruto
com surpresa e prazer.
Cada dia uma nova luz se deslumbra.
Não só as azuis, mas também as verdes e vermelhas
que noutros tempos não brilhavam.
Sob o sol ou na tempestade,
o corpo vai seguir seu caminho.
Saltando entre as pedras, brincando e voando até, sem fôlego, encontrar lá adiante a alma fujona, rindo distraída.

sábado, 25 de setembro de 2010

Desejo

Quero a verdade absoluta

o espelho que me fez ver quem eu era
que me permitiu sentir sem esforço
que levou e ainda não me devolveu
que eu nem sei se existe mas
que por alguns instantes estava lá
bem na minha frente

terça-feira, 14 de setembro de 2010

Geraldo Carneiro

À flor da Fala

é daqui mesmo que eu te conheço?
ah, não? então de que outro lugar será
que eu não te conheço? se eu fosse místico
talvez redecifrasse a tua face
de alguma encarnação imemorial
(ou desde o princípio dos tempos,
antes que os deuses desinventassem
os carnavais do caos).
mesmo não sendo místico diria
desse pequeno prenúncio de apocalipse:
agora sim compreendo a música das esferas,
os teoremas de Arquimedes de Siracusa,
a mecânica celeste, e todos os demais
mistérios do reino deste mundo: só quero
conhecer-te ainda nesta encarnação:
antes que a minha alma improvável
se arremesse na província do nada,
a morada dos seres sem amor

-------------------------------------------

Para aquele que me fez perder o medo de mergulhar no mar sem fim

quinta-feira, 9 de setembro de 2010

Dia da independência

Ainda atordoada, saí em busca da volta pra casa.
O Centro vazio, na luz fria da manhã de quase sol, estava calmo. Silencioso e belo.
Nenhum carro na rua, nenhum táxi que me resgatasse... não fosse o desconforto da alma, teria querido ficar perambulando e contemplando o casario fechado. Me contentei em apreciar o caminho até o metro. Queria só chegar em casa.
Inútil.
As estações próximas, ainda fechadas para embarque, vomitavam toda sorte de fardas e armas. Todos animados, não exatamente felizes, marchando acelerado com mais destino que eu. Fiquei observando por um tempo tentando saber se estava acordada ou tendo um pesadelo apocalíptico. Segui andando e quando me dei conta estava caminhando sobre as grades da ventilação da estação que tanto me assombram e me fazem imaginar cada milímetro da queda. Mas o passo acelerado não distinguia a medida nem o medo. O Largo da Carioca, que vejo todos os dias apinhado de gente, estava então vazio. Até os ladrões estavam dormindo. Por que eu não? Era a pergunta dentro da cabeça. Só consegui um táxi na Cinelândia, depois de passar ao lado do Municipal reluzente, onde li Tragédia e Comédia na mesma fachada. Fez todo o sentido. Agora vou dormir, chega de catarse por hora.

sexta-feira, 3 de setembro de 2010

qq

qualquer momento, espreita
qualquer lição, respira
qualquer rosto, ilumina
qualquer livro, esconde a página que se espera ler
qualquer esquina, liberta
qualquer palavra, derrama
qualquer caminho, te traz

Fauna

Um senhor, visívelmente perturbado, com caráter duvidoso e sérios indícios de psicoses variadas, acredita que pode ser um psicólogo. Já começa a organizar a formatura e acredita cegamente em Freud.

Um outro que passa seus dias atrás de uma mesa de recepção, sem nenhum proveito dessas horas com algo útil, a não ser falar sem parar sobre o nada, acredita que será eleito deputado estadual. Já se batizou de doutor e já faz sua lista de assessores. Se diz feliz independente do resultado das eleições. Já ganhou de bonus a licença de seis meses com vencimentos garantidos por lei.

Acho que estou sendo má e preconceituosa. São pessoas comuns perseguindo seus sonhos. E vão conseguir.

Enquanto isso, ficamos reclamando da vida o tempo todo.
Eu tenho tentado parar.
Já melhorei muito, nem eu me aguentava!
Mas não basta entender que o que passamos é fruto de nossas escolhas. Isso é filosofia de banca de jornal. Temos que fazer por onde ver outros caminhos possíveis e sair da bolha em que nos metemos para ter menos medo, dormir tranquilos, não ter trabalho nem ter que pensar.

Não que eu vá aceitar a vida como ela é e fazer terapia com o fulano acima ou votar naquele segundo exemplar da massa de manobra. Estas escolhas eu domino bem. O problema são as que a gente nem percebe que faz.
Quando vê já fez.
Aí começa a tortura e a autoflagelação.
É preciso romper esse padão [mais uma frase típica de analista], ver o lado bom das coisas sem ficar cego, entender bem que papel cada pessoa tem em nossa vida sem expectativas mutiladas, buscar prazeres outros que te façam levantar a bunda da cadeira e andar na rua apreciando o dia, isso em si já é um bom começo.

Café da manhã

Era domingo de manhã de um Setembro nublado.
Saiu de casa sem muito a fazer, apenas comprar frutas e pão.
Ela atravessou a rua.
De longe o viu distraído, em frente à livraria.
Ele estava vestindo a velha calça xadrez e o casaco que ela havia lhe dado no ultimo aniversário antes da viagem que os separou anos atrás.
Não sabia o que fazer. Andar até ele e abraçá-lo como se fosse um dia comum e seguir juntos ao mercado como se o tempo não tivesse passado. Ficar de longe guardando as lembranças e deixando tudo como está.
Se deixou paralisar e deu as costas tomando outro caminho.

Ela sabia que ele voltara havia algumas semanas. Chegou a imaginar que ele a procuraria ou apareceria em sua casa de repente. Mas já havia acalmado o coração e esquecido o delírio até então.
Lembrou que o amava. Lembrou do medo que sentia por não saber como seria amar outra pessoa, como a mesma luz se acenderia dentro dela e como seria se deixar amar tão simplesmente por alguém diferente.
Mas o que era isso, do que estava falando? Isso já havia sido superado, ela já era feliz novamente, tinha sua vida, seu trabalho, já não chorava mais. Nunca mais chorou.
Aquela visão abriu uma janela para uma paisagem já sem cores.

Seguiu em frente e foi atrás das cores das frutas e do perfume do pão.
Pequenas coisas lhe davam imenso prazer.
Atravessar a rua numa manhã de poças d´água respirando umidade das árvores e o vento frio eram um acontecimento.
Os olhares para ela eram outros. Ela estava viva e se via na paisagem completamente leve.
Um homem magro, de cachecol e olhos falantes atravessou no sentido contrário e prendeu segundos da sua atenção e respiração. Sentiu um frio na barriga. Foi como se ele, com os olhos, tivesse levado um pouco de sua alma.
Seguiu mais leve ainda por isso.

Liberdade

Como que por encanto,
iluminada em sorriso
acalmo o coração.
E pleno,
parte em nova viagem
tal como pipa que se solta da linha
colore o céu e se diverte com o vento.
Na terra, meninos em alvoroço
correm por cima dos telhados e árvores
a tentar alcançá-la.
A pipa, livre, se ri,
mais moleque que todos eles juntos.

Sem Fim

Quando se tarda revirando a alma
explicando ao vento o que viveu,
a névoa dos olhos se dissolve
e a imagem que se vê no espelho
não é mais aquela frágil manifestação.
Se antes o medo do reflexo ignorava a imagem,
agora mostra o que aprendeu.
Olha em volta e percebe:
você cresceu.

Soundtracks#2

Vai aí mais um punhado de memória musical.

Sonífera Ilha [Titãs], eu tinha 11 anos, menina magrela, cabelos curtinhos, com minha blusa de helanca azul marinho de gola rolê, no inverno de Vila Valqueire. Eu ia de patins comprar pão na padaria e ouvia num rádio perto a música top das paradas.
Eu sei [Legião], Violão nos intervalos das aulas, meu primeiro namorado;
Polícia [Titãs], nas festas do colégio, era o máximo dançar se jogando uns nos outros, eu era timida e não fazia, ficava só olhando morrendo de vontade. Fui aprender a "me jogar" anos depois;
Every Breath you take [The Police], Stephen King, tardes de cinema com Isa e Cla;
Brothers in arms [Dire Straits], uma festa, um amor platônico. O primeiro de tantos. Era mais fácil de administrar.
This Charming Man [Smiths], mais festas, dançar sempre foi meu bagulho!!!
Blue Velvet [Bobby Vinton], filas para senhas no CCBB, filme francês...
Let´s Dance e Ashes to ashes [David Bowie], adolecência, timidez, espinhas na cara, calça jeans e camiseta branca. Eu era nerd! Adorava musica francesa e rock inglês, bem deprê. Tinha poucos amigos, mas fiéis até hoje.
People are strange e Love me two times [Doors], faculdade, viagens, festas, noites viradas trabalhando, namorando, dançando, pessoas estranhas, muitos amigos, outros nem tanto;
Love Shack [B52], Dr Smith madrugada a dentro;
Eu te amo [Chico Buarque], uma história de altos e baixos;
Senhas [Adriana Calcanhoto], as pessoas mudam... ou não mudam e a gente se cansa delas?
Samba de Roda [Maria Bethania], três da madrugada, um galo canta lá longe. Vila Valqueire é quase uma cidade do interior. Hora de limpar a prancheta e constatar que o trabalho não vai estar pronto quando o portão do vizinho ranger a fechadura;
Agora só falta você [Rita Lee], formatura e um pedido de casamento. Foi bonito!
Heroes [D. Bowie], crises e esperança... depois mais crises;
Socorro [Arnaldo Antunes], foi quando assisti o primeiro show do Arnaldo, no palco do finado Ball Room, ele cantava e parecia traduzir exatamente o que eu estava sentindo ha meses, ou seja nada!
Perfect day [Lou Reed], uma paixão fulminante;
Quereres  [na voz de Maria Bethania], poesia e música juntas numa só voz.
O amor [Secos e molhados] maturidade, clarividência;
Eu [Pato Fu] Novos ventos virão...muitas vontades, minhas vontades.