quarta-feira, 17 de outubro de 2012

Ensaio

Parou por um instante no hall do prédio
Lembrou de Cortazar e pensou que precisaria mais do que as suas instruções para subir escadas para fazê-lo chegar à porta de Laura no segundo andar.
Estava paralizado entre o medo e o desejo. A mochila pesava nas costas, as pernas tremiam, mal respirava. De repente um estrondo quase o matou de susto e o trouxe de volta do transe. Era um morador que ao entrar no prédio soltou displicente a pesada porta de ferro trabalhado.
_Vai onde? Tá perdido? Perguntou o morador.
_Estou esperando um amigo. Mentiu sem pensar, torcendo para não ter que responder uma segunda pergunta.
O Morador só fez um sinal com a cabeça e subiu as escadas desaparecendo na curva do corredor.
_Bom... pensou. Tenho que fazer isso. Quero fazer isso!
E subiu. 
Degrau por degrau, lentamente, foi observando o piso de mármore, o gradil da escada com flores forjadas em ferro retorcido coberto por grossas camadas de tinta preta e dourada. No ar um cheiro de pó de tempo misturado com especiarias do jantar de alguém. Sua respiração tinha entrado em compasso com cada degrau alcançado. Admirava o prédio já fazia algum tempo mas nunca pensou que conheceria alguém que morasse lá. 
Muito menos uma mulher. 
Ela o esperava. E ele sabia que era esperado. Isso só aumentava a tensão. 
O que dizer ao abrir a porta? Oi!? Só oi e os olhos dirão o resto? Como será que ela vai estar vestida? Que cheiro tem seu apartamento? O que estou fazendo?! Por que vim até aqui?! O que espero que aconteça? Vou ter uma amante agora? Que patético, amo minha mulher! O que ela vai pensar de mim? O que eu vou pensar de mim? Não quero virar um clichê ridículo e previsível. Foco! Vou só ver os quadros, fazer a entrevista e escrever minha critica. 
Laura pintava. Fizera sua primeira exposição há três semanas. Foi onde se conheceram. Ele se lembra que não queria sair naquela noite. Reclamou mas acabou indo com a mulher ao vernissage. Ao chegar, o barulho das pessoas conversando, a musica alta, o deixaram tonto. Foi quando a viu de longe, e tudo era então só silêncio. Ela estava expondo com os seus amigos na coletiva. Foram devidamente apresentados, ele, Jonas, jornalista da coluna cultural do jornal aspirante a escritor e ela, Laura, formada em artes na França, de volta a cidade trazendo alguns dos seus trabalhos. Conversaram sobre arte e sobre o que move as pessoas, e ela pediu que ele escrevesse sobre seu trabalho. O oco silencioso em que estava imerso só permitia que ele ouvisse sua voz. Seus olhos só enxergavam Laura na sua frente. Estava perdido. De repente num salto estava ali, depois de evitar por semanas o convite com medo dele mesmo. Finalmente, o ultimo degrau vencido, lá estava a porta. Tocou, a porta foi aberta e ali começou outra história.



[107]


A sacola caída na entrada da casa deixava escorrer seu conteúdo no piso antigo, trincado de tempo.
Tinhas deixado um bilhete.
Não estava.
Minha mão gelada não conseguia girar a chave.
Sem forças para vencer a tranca, sento-me no degrau em frente à porta esperando que, em um instante, ela se abra e você apareça para o resgate.
Permaneço imóvel tentando me esconder de mim mesma.
Num momento de lucidez, quando a lágrima fria vazou o tecido da saia, me levanto, recolho a sacola e saio novamente.
Estou sem lugar.
Minha concha está vazia. As ondas invadiram meu refugio e levaram tudo que eu tinha.
Estou boiando sem pulso ouvindo o canto do mar.

Drummond


Poema de sete faces

Quando nasci, um anjo torto
desses que vivem na sombra
disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida.

As casas espiam os homens
que correm atrás de mulheres.
A tarde talvez fosse azul,
não houvesse tantos desejos.

O bonde passa cheio de pernas:
pernas brancas pretas amarelas.
Para que tanta perna, meu Deus, pergunta meu coração.
Porém meus olhos
não perguntam nada.

O homem atrás do bigode
é sério, simples e forte.
Quase não conversa.
Tem poucos, raros amigos
o homem atrás dos óculos e do bigode.

Meu Deus, por que me abandonaste
se sabias que eu não era Deus,
se sabias que eu era fraco.

Mundo mundo vasto mundo
se eu me chamasse Raimundo
seria uma rima, não seria uma solução.
Mundo mundo vasto mundo,
mais vasto é meu coração.

Eu não devia te dizer
mas essa lua
mas esse conhaque
botam a gente comovido como o diabo.