segunda-feira, 29 de março de 2010

Hospital

Sem dramas.
Aquele tom de reticências que se espera subentender, lágrimas,
jogos de palavras e expectativas irreais,
passam a nada quando se tem coisas mais elementares em que pensar.
Essa clareza só se tem antes da morte ou quando um filho adoece.
Aqui, depois de alguns dias de prisão,
com um serviço de quarto eficiente, um bom ar condicionado e sem preocupações com a conta no final,
é quase férias, não fosse a pequena de molho na cama com uma veia recebendo antibióticos.
Minha maior preocupação é distraí-la e evitar que seus movimentos inquietos de criança danifiquem o acesso à veia. A dor de um novo furo será certamente maior em mim que nela.
Nestas circunstâncias, algumas coisas da vida se tornam pequenas e sem importância.
Se vou pagar..., conseguir..., ter..., fazer..., viajar..., encontrar...
Todas as angústias do cotidiano se transformam em fumaça.
Tudo fica tão fácil de resolver que dá até uma certa alegria.
Até aquela frustração vira nada. Não engasga mais.
O melhor gosto da noite foi tirado do veneno de outros tempos.
Bom, ainda tenho alguns dias de claustro.
Muito desenho animado, paciência e criatividade.
Certamente sairei desta mais leve do que quando entrei.

terça-feira, 16 de março de 2010

Fato

Fernando Pessoa é quase um manual para a alma
não é possível pensar em viver e morrer,
com todo o drama que se carece,
sem ler um único de seus mandamentos.

Mais Pessoa

Cartas de Amor


Todas as cartas de amor são ridículas.
Não seriam cartas de amor se não fossem ridículas.
Também escrevi em meu tempo cartas de amor,
Como as outras, ridículas.
As cartas de amor, se há amor,
Têm de ser ridículas.
Mas, afinal, só as criaturas que nunca
escreveram cartas de amor é que são ridículas.
Quem me dera no tempo em que escrevia
Sem dar por isso cartas de amor ridículas.
A verdade é que hoje
As minhas memórias
Dessas cartas de amor é que são ridículas.
(Todas as palavras esdrúxulas, como os sentimentos esdrúxulos,
são naturalmente ridículas.)
(Álvaro de Campos)

domingo, 14 de março de 2010

Sou Eu

Fernando Pessoa

Sou eu, eu mesmo, tal qual resultei de tudo,
Espécie de acessório ou sobressalente próprio,
Arredores irregulares da minha emoção sincera,
Sou eu aqui em mim, sou eu.
Quanto fui, quanto não fui, tudo isso sou.
Quanto quis, quanto não quis, tudo isso me forma.
Quanto amei ou deixei de amar é a mesma saudade em mim.
E, ao mesmo tempo, a impressão, um pouco inconseqüente,
Como de um sonho formado sobre realidades mistas,
De me ter deixado, a mim, num banco de carro elétrico,
Para ser encontrado pelo acaso de quem se lhe ir sentar em cima.
E, ao mesmo tempo, a impressão, um pouco longínqua,
Como de um sonho que se quer lembrar na penumbra a que se acorda,
De haver melhor em mim do que eu.
Sim, ao mesmo tempo, a impressão, um pouco dolorosa,
Como de um acordar sem sonhos para um dia de muitos credores,
De haver falhado tudo como tropeçar no capacho,
De haver embrulhado tudo como a mala sem as escovas,
De haver substituído qualquer coisa a mim algures na vida.
Baste! É a impressão um tanto ou quanto metafísica,
Como o sol pela última vez sobre a janela da casa a abandonar,
De que mais vale ser criança que querer compreender o mundo —
A impressão de pão com manteiga e brinquedos
De um grande sossego sem Jardins de Prosérpina,
De uma boa-vontade para com a vida encostada de testa à janela,
Num ver chover com som lá fora
E não as lágrimas mortas de custar a engolir.
Baste, sim baste! Sou eu mesmo, o trocado,
O emissário sem carta nem credenciais,
O palhaço sem riso, o bobo com o grande fato de outro,
A quem tinem as campainhas da cabeça
Como chocalhos pequenos de uma servidão em cima.
Sou eu mesmo, a charada sincopada
Que ninguém da roda decifra nos serões de província.
Sou eu mesmo, que remédio! ...

quinta-feira, 11 de março de 2010

outra vez...

Quero deitar na grama,
conversar sem hora pra levantar.
Contar da vida,
da sorte de encontrar os amigos,
dos filhos,
das viagens
e caminhos do tempo.
Dividir o coração
caber não menos que no mundo.
Ficar muda sem compromisso
sentir o vento sem medo
e seguir tranquilamente.

terça-feira, 9 de março de 2010

oco

[oco]
de dentro nem um som
[palavra]
a lágrima mal consegue sair de susto
o riso nem se arrisca
o segundo é eterno
momentos de euforia e confusão
raios e trovões
ventos trazem a memória
[oco]
o silêncio é parte delírio
[palavra]
imagens confusas no livro aberto
o silêncio não existe
as palavras estão lá
como aquele dia que nunca existiu
e que sinto o gosto até hoje.