quinta-feira, 24 de novembro de 2011

Mais um conto para distrair a morte

O dia difícil, dolorido, ganhara uma tempestade ensurdecedora.
Ali, presa entre os livros, a chuva lá fora e os ventos aqui dentro,
me peguei pensando qual o significado de tudo aquilo.
Um trovão pareceu me dizer
Renda-se!
Desista!
Pare!
Depois da chuva, me encontro com o que fora arrastado pela água.
Mais a deriva do que nunca, voltei pra casa sem mim.
Me deixei vagando pela rua, devastada, a procura dos pedaços do que eu mesma parti.
Dormi afogada pelos meus pesadelos e acordei cinza.
Segui mecânicamente mais um dia desejando em vão voltar para o sonho.
Ainda perdida, apelo a Cherazade e conto mais uma noite.
Agora estou aqui novamente sem rumo, sem vento, sem chuvas, sem mim,
que saí pela porta e não sei quando vou voltar.


Sempre em desassossego me encontro


[10]
E assim sou, fútil e sensível, capaz de impulsos violentos e absorventes, maus e bons, nobres e vis, mas nunca de um sentimento que subsista, nunca de uma emoção que continue, e entre para a substância da alma. Tudo em mim é a tendência para ser a seguir outra coisa; uma impaciência da alma consigo mesma, como com uma criança inoportuna; um desassossego sempre crescente e sempre igual. Tudo me interessa e nada me prende. Atendo a tudo sonhando sempre; fixo os mínimos gestos faciais de com quem falo, recolho as entoações milimétricas dos seus dizeres expressos; mas ao ouvi-lo, não o escuto, estou pensando noutra coisa, e o que menos colhi da conversa foi a noção do que nela se disse, da minha parte ou da parte de com quem falei. Assim, muitas vezes, repito a alguém o que já lhe repeti, pergunto-lhe
de novo aquilo a que ele já me respondeu; mas posso descrever, em quatro palavras fotográficas, o semblante muscular com que ele disse o que me não lembra, ou a inclinação de ouvir com os olhos com que recebeu a narrativa que me não recordava ter-lhe feito. Sou dois, e ambos têm a distância – irmãos siameses que não estão pegados.


O livro do desassossego
FP