segunda-feira, 24 de dezembro de 2012

Ruidos de movimento


Frenesi de fim de ano, fim de mundo, fim de mais um ciclo.
O vento, a temperatura, as obrigações.
Os amigos, as festas, as comidas.
A garçonete nervosa, o fetuccine ruim, a dor nas costas.
Nada consegue abafar o ranger das dobradiças da minha bagagem.
A peça que falta continua debilitando a engrenagem.
Fazendo o silêncio ser mais dolorido.



quarta-feira, 5 de dezembro de 2012

Flash

Ao volante, em mais um dia a caminho do trabalho, pensava nela.
Onde andará?
O que estará fazendo?
Será que ainda pensa nele?
As buzinas o trazem de volta.
Esquece.
Por quanto tempo esquecerá?


sábado, 3 de novembro de 2012

encontros e dez encontros


















Eu perdi, ha muito tempo...
mas não perdi na rua ou no trem.
Perdi aqui dentro.
Não aqui na sala,
mas no peito, bem na caixa.
Demorou, mas encontrei.
Está aqui bem guardado agora.
Não está preso. Está livre.
Quando quer, se vai.
Mais cedo mais tarde volta.
Quando some uns tempos, dói.
Dói mais quando volta de repente, sem aviso.
Sem ar.
Mas fica e adormece outra vez no seu canto.
Até um dia quem sabe, ser acordado por uma flor.

quarta-feira, 17 de outubro de 2012

Ensaio

Parou por um instante no hall do prédio
Lembrou de Cortazar e pensou que precisaria mais do que as suas instruções para subir escadas para fazê-lo chegar à porta de Laura no segundo andar.
Estava paralizado entre o medo e o desejo. A mochila pesava nas costas, as pernas tremiam, mal respirava. De repente um estrondo quase o matou de susto e o trouxe de volta do transe. Era um morador que ao entrar no prédio soltou displicente a pesada porta de ferro trabalhado.
_Vai onde? Tá perdido? Perguntou o morador.
_Estou esperando um amigo. Mentiu sem pensar, torcendo para não ter que responder uma segunda pergunta.
O Morador só fez um sinal com a cabeça e subiu as escadas desaparecendo na curva do corredor.
_Bom... pensou. Tenho que fazer isso. Quero fazer isso!
E subiu. 
Degrau por degrau, lentamente, foi observando o piso de mármore, o gradil da escada com flores forjadas em ferro retorcido coberto por grossas camadas de tinta preta e dourada. No ar um cheiro de pó de tempo misturado com especiarias do jantar de alguém. Sua respiração tinha entrado em compasso com cada degrau alcançado. Admirava o prédio já fazia algum tempo mas nunca pensou que conheceria alguém que morasse lá. 
Muito menos uma mulher. 
Ela o esperava. E ele sabia que era esperado. Isso só aumentava a tensão. 
O que dizer ao abrir a porta? Oi!? Só oi e os olhos dirão o resto? Como será que ela vai estar vestida? Que cheiro tem seu apartamento? O que estou fazendo?! Por que vim até aqui?! O que espero que aconteça? Vou ter uma amante agora? Que patético, amo minha mulher! O que ela vai pensar de mim? O que eu vou pensar de mim? Não quero virar um clichê ridículo e previsível. Foco! Vou só ver os quadros, fazer a entrevista e escrever minha critica. 
Laura pintava. Fizera sua primeira exposição há três semanas. Foi onde se conheceram. Ele se lembra que não queria sair naquela noite. Reclamou mas acabou indo com a mulher ao vernissage. Ao chegar, o barulho das pessoas conversando, a musica alta, o deixaram tonto. Foi quando a viu de longe, e tudo era então só silêncio. Ela estava expondo com os seus amigos na coletiva. Foram devidamente apresentados, ele, Jonas, jornalista da coluna cultural do jornal aspirante a escritor e ela, Laura, formada em artes na França, de volta a cidade trazendo alguns dos seus trabalhos. Conversaram sobre arte e sobre o que move as pessoas, e ela pediu que ele escrevesse sobre seu trabalho. O oco silencioso em que estava imerso só permitia que ele ouvisse sua voz. Seus olhos só enxergavam Laura na sua frente. Estava perdido. De repente num salto estava ali, depois de evitar por semanas o convite com medo dele mesmo. Finalmente, o ultimo degrau vencido, lá estava a porta. Tocou, a porta foi aberta e ali começou outra história.



[107]


A sacola caída na entrada da casa deixava escorrer seu conteúdo no piso antigo, trincado de tempo.
Tinhas deixado um bilhete.
Não estava.
Minha mão gelada não conseguia girar a chave.
Sem forças para vencer a tranca, sento-me no degrau em frente à porta esperando que, em um instante, ela se abra e você apareça para o resgate.
Permaneço imóvel tentando me esconder de mim mesma.
Num momento de lucidez, quando a lágrima fria vazou o tecido da saia, me levanto, recolho a sacola e saio novamente.
Estou sem lugar.
Minha concha está vazia. As ondas invadiram meu refugio e levaram tudo que eu tinha.
Estou boiando sem pulso ouvindo o canto do mar.

Drummond


Poema de sete faces

Quando nasci, um anjo torto
desses que vivem na sombra
disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida.

As casas espiam os homens
que correm atrás de mulheres.
A tarde talvez fosse azul,
não houvesse tantos desejos.

O bonde passa cheio de pernas:
pernas brancas pretas amarelas.
Para que tanta perna, meu Deus, pergunta meu coração.
Porém meus olhos
não perguntam nada.

O homem atrás do bigode
é sério, simples e forte.
Quase não conversa.
Tem poucos, raros amigos
o homem atrás dos óculos e do bigode.

Meu Deus, por que me abandonaste
se sabias que eu não era Deus,
se sabias que eu era fraco.

Mundo mundo vasto mundo
se eu me chamasse Raimundo
seria uma rima, não seria uma solução.
Mundo mundo vasto mundo,
mais vasto é meu coração.

Eu não devia te dizer
mas essa lua
mas esse conhaque
botam a gente comovido como o diabo.

sexta-feira, 28 de setembro de 2012

Drexler pela manhã


Al Otro Lado del Río
Clavo mi remo en el agua
Llevo tu remo en el mío
Creo que he visto una luz al otro lado del río

El día le irá pudiendo poco a poco al frío
Creo que he visto una luz al otro lado del río

Sobre todo creo que no todo está perdido
Tanta lágrima, tanta lágrima y yo, soy un vaso vacío

Oigo una voz que me llama casi un suspiro
Rema, rema, rema-a Rema, rema, rema-a

En esta orilla del mundo lo que no es presa es baldío
Creo que he visto una luz al otro lado del río

Yo muy serio voy remando muy adentro sonrío
Creo que he visto una luz al otro lado del río

Sobre todo creo que no todo está perdido
Tanta lágrima, tanta lágrima y yo, soy un vaso vacío

Oigo una voz que me llama casi un suspiro
Rema, rema, rema-a Rema, rema, rema-a

Clavo mi remo en el agua
Llevo tu remo en el mío
Creo que he visto una luz al otro lado del río

quinta-feira, 27 de setembro de 2012

Seguindo viagem



Mapas não tenho.
Me guio mais facilmente de olhos fechados.
Tenho uma bússola aqui dentro.
Meu coração
Lá de cima, da Gávea, a razão as vezes grita:
Páaaaaaara!
E ele para por uns instantes.
Prende a respiração.
Fica quieto.
Espera a razão se distrair com outras coisas
... e retoma seu ritmo.
Corre atrás de uma saudade,
sufoca a garganta e quase salta pela boca com gosto de lágrima.
Depois canta e encontra de novo sua frequencia.
Sem mapas, sem manual de instruções, sem lei.
Se perde e se encontra.
Todo santo dia.

As velas iluminam o caminho.
E dele, guardo a memória, as vezes uma pedra, uma folha, uma concha, uma história.






quarta-feira, 19 de setembro de 2012

O sorriso na escuridão


Coragem, para meus oito anos, era ir ao banheiro sozinha nas noites insones de pesadelos.
Para os 13, era me deixar levar pelo primeiro amor.
Para os 14, era deixá-lo ir embora e me jogar no mundo a procura de mim.
Quando aos 23 resolvi casar era ao mesmo tempo um ato de coragem e de completo pavor de ficar sozinha comigo mesma. 
As escolhas nem sempre são simples e imediatas. O medo de ir por um caminho e perder o outro nos paralisa diante da porta aberta, do carro engrenado, da mão estendida. 
Os anos foram passando, as coragens foram mudando de cor, de tempo e de forma. Algumas desistiram de mim, outras demoraram a amadurecer. Acho que não reguei corretamente e a cura foi tardia. 
Tem coragem que já nasce com a gente, tem coragem que se aprende a ter. Tem coragem para uns que é medo para outros e tem coragem que se cria do medo. Eu nem menstruava ainda, mas já sabia que ia ter um filho. O medo de uma cesariana, que vi uma tia recém parida levar mais de um mês para se restabelecer, me criou a coragem de acreditar que, para mim, não haveria melhor opção que um parto mais que natural mesmo este sendo tão assombrosamente pintado e descrito como a maior das dores do mundo. 
A coragem é volátil, os medos o vento e não há melhor sensação do que aquela que se percebe quando um medo antigo se transmutou em coragem e naturalmente aquilo que era impossível de se fazer se torna a mais nova realidade da vida. Basta chegar a hora certa, o momento da escolha entre pular ou dormir. 
Coragem não é um ato irresponsável movido por um mero e insignificante impulso. Coragem se cultiva, se dá atenção, se respeita, se busca lá de dentro. Como aquela que depois dos trinta anos nos faz olhar para o espelho e sem as máscaras usuais dizer: Agora acabou a brincadeira. Vamos ter uma conversa olho no olho. Quem dá ouvidos a essa coragem e sai no dia seguinte nu, vai descobrir que ganhou mais uma ferramenta de sobrevivência, a aceitação do imperfeito.
Ainda tenho muitas coragens no meu canteiro esperando rega e uma conversinha de pé de ouvido. Tenho alguns medos também, que serão muito úteis para alimentar a coragem e desafiar o orgulho. O importante é que em qualquer tempo, é possível se ter nas mãos sua coragem e fazer o que se quer com ela. Seja mudar de profissão, enfrentar pela primeira vez uma platéia, realizar um sonho de infância, experimentar algo novo e impensado como viajar sem rumo ou viver mais quarenta anos ao lado de quem se ama. 
Tudo é possível, especialmente numa noite em que a lua sorri para você.

domingo, 9 de setembro de 2012

Clarice para um domingo


Porque eu me imaginava mais forte. Porque eu fazia do amor um cálculo matemático errado: pensava que, somando as compreensões, eu amava. Não sabia que, somando as incompreensões, é que se ama verdadeiramente. Porque eu, só por ter tido carinho, pensei que amar é fácil. É porque eu não quis o amor solene, sem compreender que a solenidade ritualiza a incompreensão e a transforma em oferenda. E é também porque sempre fui de brigar muito, meu modo é brigando. É porque sempre tento chegar pelo meu modo. É porque ainda não sei ceder. É porque no fundo eu queria amar o que eu amaria - e não o que é. 

Clarice Lispector . Felicidade Clandestina

domingo, 26 de agosto de 2012

Domingo no parque
















Sol no parque.
Sigo distraindo meu coração enquanto observo.

Encontros e desencontros.
Amores de fim de semana.
Pessoas fugindo da brancura das paredes do apartamento.
Dormindo no banco a espera do tempo.
Deixando as crianças correrem livremente sem o risco de enlouquecer os pais.
Vendedores de tudo.


E distraída percebi que...

encontrei e perdi partes de mim,
me apaixonei por mim mesma nem que apenas por um domingo,
fugi da bruma segura do meu quarto,
vi passar o tempo sem pressa,
soltei minha criança,
vendi minhas dores e voltei pra casa feliz.









































































domingo, 12 de agosto de 2012

Aos desassossegados anônimos

Não sou uma pessoa crente.
Minha desilusão com dogmas veio cedo.
Mas creio na energia criadora.
Uma entidade capaz de criar e destruir.
Energia que vem de cada ser na medida do seu desassossego.
Desassossego que move e transforma.
Que faz a vida parecer um quartinho pequeno para tantas vontades.
Desassossego que junta e separa.
Cria novos laços e desata nós.
A pulga atrás da orelha.
O bicho carpinteiro da alma.
A arte é a voz do desassossego.
Uma foto, uma história, um poema...
Cada um que bote para fora o seu a sua maneira.
Semeando inquietudes, abrindo janelas e deixando a luz entrar.




quarta-feira, 20 de junho de 2012

Nó venta e desata

No ventar dos dias
a mão espalmada em vela
sente o tempo por entre os dedos.
Os nós se desatam
e um assobio retorna na memória.
O chegado fica
e não mais vai embora.

sexta-feira, 15 de junho de 2012

Mais um dia

Os pés deslizam
a saia suspende na ponta dos dedos
a musica entra pela pele e faz o corpo dançar sem freio
Ele observa e sorri.
Resta pouco tempo.
Ela está feliz,
mesmo sabendo que em minutos estará às lágrimas.
Suas mãos trataram de memorizar cada toque.
Seus olhos fixaram sua imagem na retina,
para que assim resista gravada por todo o fim de semana.
Suas memórias foram ativadas e
o doce aroma das férias do passado se fez presente
como bálsamo para sua alma atormentada com a
realidade da espera.



segunda-feira, 4 de junho de 2012

O tempo é fragmento

grão

acumula e concentra,
aglutina em pequenas gotas,
semente que germina
quando tem que germinar.

Passa como o vento
levando folhas e lençóis.
Morde e fere,
cura e guarda.

O tempo não existe,
quando juntos os amantes.
Mas a espera angustia,
cega e apavora  na distância.

Distância que separa continentes
Distância no olhar de quem está na frente
Distância que não se mede
na urgência do beijo.

Beijo que une duas pessoas
que rompe com o tempo e o espaço
transformando a vida
movendo sem tirar do lugar.

os amantes

que juntos,
no querer e na coragem
sem tempo e sem distância
seguem de mãos dadas para viver mais um dia.

terça-feira, 29 de maio de 2012

Constatações de aniversário

Com 19, você é jovem e pouco preocupado com os outros e por inconsequência, faz um monte de merda.
Com 29, você se preocupa demais com o que os outros pensam e fica puto com quem está fazendo merda.
Com 39, você não está nem aí pra quem faz merda, nem para o que pensam os outros e ainda faz merda bem feita.
Não é ótimo?

sábado, 26 de maio de 2012

Arnaldo, o Antunes

A primeira memória que tenho de Arnaldo Antunes é, em 198... , numa das suas performances Frankstein no Cassino do Chacrinha, cantando com os Titãs Sonífera ilha. Minha favorita até hoje. Fui e sou fiel a era Titãs+Paralamas+Legião, vi Titãs e Paralamas juntos num show histórico em janeiro de 1992.


Quando Arnaldo saiu do grupo, magoei e impliquei por um tempo com sua carreira solo. 
Seus poemas concretos só foram me conquistar tempos depois. 
Em 2002, eu acho, fui convidada a assistir no Ballroom meu primeiro show dele. Não animei muito mas fui, assim meio levada por um amigo querido que faria a iluminação do show e queria evitar que eu ficasse deprê em casa chorando o fim do casamento. Chegando lá, como era cedo, entrei pelos fundos e quando me dei conta, estava sendo apresentada ao Arnaldo. Não deu tempo nem de pensar. Que bom porque também não ia conseguir falar nada que prestasse. 
Este show foi um marco! Arnaldo cantando num palco micro, a um braço de distância as musicas que fariam parte da trilha sonora dos meus próximos anos. Fiz as pazes com ele.

Certa vez, em 2004 eu acho, numa viagem a diamantina, vi um sujeito que circulava pela cidade, também turista anonimo como eu que me lembrou aquela figura. Mas não identifiquei. Imaginaaaa, claro que não era. Foi quando num restaurante, almoçando, o tal sujeito que sentara na mesa atras da minha chamou o garçom e fez seu pedido. E foi pela voz eu o identifiquei de fato. Adorei, fiquei emocionada, mas mantive o anonimato, nada de chiliques ou pedidos de fotos e autógrafo. Sou reprimida.

Depois, já bem fã, fui vê-lo novamente no Teatro da Caixa, ali na av. Chile. Teatro pequeno, clima formal que Arnaldo fez questão de quebrar descendo do palco e circulando pelas cadeiras e chegando bem pertinho para cumprimentar Lenine que estava ali sentadinho quase do meu lado! Lindo show. 
Depois disso, ano passado, no Circo, novo e emocionante show do cd ie ie ie, me diverti como nunca. Ver a energia que ele passa, a poesia nas letras, o carisma com o publico é muito bacana. 
A partir de então, resolvi não deixar passar mais tanto tempo para ir vê-lo, e hoje, mais uma vez estou já contando os minutos para cantar com ele "minhas" várias musicas!! 





terça-feira, 3 de abril de 2012

Amor


_Hei! Menina! Desça já daí!
_Hã? Quem, eu?
_Sim, você! Você tem permissão para subir aí?
_Tenho sim, senhor!
_ Então mostre, quero ver o recibo carimbado de sentimento contraído.
_Não tenho, não senhor!
_Então desça, já!
_Mas senhor,
não preciso de tal documento!
O senhor não consegue ver?
Está estampado na minha cara!
Escrito na minha testa!
Brilhando nos meus olhos!
_Ordens são ordens menina! Desça imediatamente!
_Mas senhor, e minhas lágrimas de saudade? Servem?
_Não discuta comigo! Desça, já disse!
Ela tentou descer, em vão.
Seu corpo permanecia livre e solto no ar.
_Senhor, desculpe, é mais forte que eu.
Mais leve que o ar!
O senhor para me alcançar terá que amar alguém assim também.
E se isso acontecer, duvido que vá se preocupar com a ordem geral das coisas.
Por tanto, me deixe em paz e vá se ocupar dos pássaros.

terça-feira, 27 de março de 2012

Para que não restem mais dúvidas ou uma história sobre o tempo



Experimenta!
qual é o seu?
Coco, e o seu?
uva, quer?
quero!

Os outros amigos se olharam e apressaram o passo deixando os dois na esquina da vila.
O gosto da uva e do coco se misturaram e foi o inicio de um romance.
Tímidos, nem sabiam ao certo o que fazer apenas seguiram pela rua sem comentar o que aconteceu. Aqueles sentimentos eram novos e inesperados. Não sabiam nada um do outro, não sabiam que podiam perguntar nem mesmo o quê perguntar. Apenas se deixaram descobrir entre olhares fortuitos, mãos que se tocavam não tão acidentalmente e carinhos discretos enquanto ninguém estava olhando. 
O flerte dos tímidos é uma tortura medieval, mas a vontade de estarem juntos foi maior e começaram a namorar. Passaram um ano inteiro de mãos dadas e beijos trocados no sofá da sala sob olhos vigilantes. Não saíam quase nunca, estabeleceram uma rotina segura e linear que não dava trabalho manter. Eram tão crianças que não sabiam o que fazer com o que tinham nas mãos. Como se ter um jogo intrincado sem o manual de instruções. Os mais libertos inventariam suas próprias regras mas eles não arriscaram e resolveram guardar na caixa até saber o que fazer. Ela queria arriscar, mudar o ritmo, dar asas ao desejo e mais vida aquela história, mas não tinha coragem nem sabia como pôr contra a parede a menina responsável e exemplar. Isso tem um peso enorme e repressor. Enquanto ele, que talvez tivesse essa coragem, não sabia que ela não estava feliz. Ele a amava e seguia paciente, investindo no que tinham e até provocando-a algumas vezes com sua respeitosa ousadia esperando que ela confiasse nele e o seguisse. Mas ela não se sentia livre, não conseguia acompanhar seu instinto. Ela só sentia que não cabia mais dentro daquela história, que alguma coisa estava errada, mas nunca disse nada.

Não sabia que podia. 

Estavam perdidos no silencioso limbo adolescente daquela cidade do interior até que ela, atraída pelos ruídos e luzes do mundo além do portão, achou mais fácil romper o laço e eles se perderam.

Sem que soubessem como ser diferente, se afastaram quase sem querer.

Alguns anos vividos, uns cinco ou menos, se encontraram por a caso na rua. Ela sentiu uma vontade enorme de que o tempo parasse ali, mas teve medo de sair do caminho em que já estava e voltar ao limbo do qual fugira por impulso. No ar uma sensação estranha de que ali existia uma porta que deveria atravessar, mas a palavra mágica que a abriria já se ia perdida em algum canto da memória. Tentando ganhar do tempo, ela o convidou para uma visita no dia seguinte e ele foi. Ele esperava uma palavra, um movimento, qualquer sinal que o fizesse dizer que a queria de volta. E ela o mesmo. Ele tomou coragem e fez mais que dizer uma palavra, ele a beijou deixando claro o que ainda sentia e dando a ela a escolha. Ela teve medo mais uma vez, morreu por dentro e o deixou ir.
Ela tentava entender porque com todo o sentimento que guardava, não havia sido capaz remexer nas lembranças e encontrar o fio que a levaria até a chave daquela porta. Ela ainda o atava sem razão à imagem de tudo do aquilo de que queria se afastar. Voltar, pensava tolamente, seria abrir mão do desconhecido a sua frente. Por isso se conformou e outro ciclo de tempo passou, sem contato mas não sem lembranças quase sempre com saudade. Foi uma página da história arrancada e guardada por falta de coragem de mudar e enfrentar o que fosse preciso pela pessoa que amava. Guardou essa mágoa dela mesma por muito tempo.

Sua vida andou, a dele também.

Ambos estavam comprometidos e ela, depois de muito se atormentar, telefonou para contar que ia se casar. Ela no fundo esperava ouvir alguma coisa que a fizesse mudar de ideia milagrosamente. No entanto, levou um golpe ao ouvir sua voz quase indiferente do outro lado dizendo que ele também tinha seus planos. Ela mereceu ouvir isso. Ela sabia que era responsável.
Sumiram um do outro agora por mais tempo, casaram, tiveram seus filhos, seus amores e dúvidas, mas nunca deixaram de pensar um no outro, sempre ocultamente como um profundo segredo, como se esconde algo feito de muito errado, como se fosse impossível e inócuo se reencontrarem mais uma vez. Era tarde demais.

Mas o laço existia ainda. 

Dez ou onze anos depois, novo reencontro teima em acontecer. Se descobriram na internet e marcaram um encontro. Ela ainda atormentada por uma separação difícil e passando por um momento de resgate da sua identidade, viu no encontro, uma possibilidade de se entender e reencontrar consigo mesma e, quem sabe, fazer as pazes com seus próprios fantasmas. Mas no fundo o que realmente queria e, nem para si mesma foi capaz de admitir, era saber se ele ainda a amava. Era uma tentativa desesperada de se sentir amada por alguém e ela sabia que ele nunca havia deixado de amá-la. O que ela não sabia era que não estava preparada para ver que o laço que os prendia ainda estava presente e que eles agora eram pessoas completamente diferentes. Se encontraram, primeiro num café, depois seguiram para um bar, conversaram muito sobre tudo, sobre o que aconteceu e porque. Uma conversa longa, tensa, cheia de palavras medidas. Ela sentiu que ele estava ali inteiro ainda com seus sentimentos mas não foi capaz de se desarmar e se trancou novamente. Seu instinto era de preservação e não de entrega. Aquela energia que vinha dele só conseguia fazer com que ela se culpasse mais ainda por tudo. Ela ainda forçou um novo encontro mais tarde, onde conseguiu ser mais distante que no primeiro. Foi aí que percebeu que não poderiam ser amigos. Tinha muita coisa ainda a flor da pele que ela não conseguiria lidar. Carências atuais, desejos antigos, mágoas, orgulho... tantos sentimentos misturados que ela não conseguia emergir da sua loucura e enxergar o que estava ali na sua frente. Além disso, ele estava casado, com filhos e ela não podia sequer imaginar provocar em alguém o que tinha sofrido.

Nova fuga.

Ele não entendeu nada, lógico, e seguiu sua vida mais uma vez. 
Ela ficou envergonhada de ter provocado todo aquele movimento e mais uma vez recuado. Eles não entendiam como podiam estar ainda tão ligados e ao mesmo tempo tão perdidos. O que restava a fazer era seguir em frente. Ela seguiu curando suas mágoas, e um dia de cada vez tinha suas camadas de medo desprendidas e sua alma libertada. Se houve um aprendizado nisso tudo, o mais importante de todos, foi entender que cada coisa tem seu tempo para acontecer. E que as vezes o processo pode ser de minutos, mas as vezes pode durar anos. E mais uma vez, passados mais cinco anos, lá estava ela novamente deparando-se com a necessidade urgente de encarar novamente aquela pessoa. Desta vez, queria se desculpar por tanta confusão e explicar que finalmente tinha entendido o porquê de tudo aquilo. E claro, queria vê-lo novamente, agora sem amarras, sem medos. 

Transparente.

Foi o que fez. Fez contato, delicadamente preparou-se para uma recusa gentil, mas qual não foi sua surpresa, ele aceitou. Se encontraram, ou melhor, se reencontraram verdadeiramente pela primeira vez em 24 anos e este foi o primeiro dia do resto de suas vidas. 

segunda-feira, 19 de março de 2012

O que vale a pena

Ouvir:
Mãe, você é a mãe mais bonita do mundo
Eu fico olhando as outras mães das outras crianças e
penso que se eu fosse filha delas seria muito estranho.

Viva!

Corre! desgarra dessas raízes que te atam ao chão!
Respira! Vai parar a dor!
Dança! Gira por entre nuvens de desejo!
Arde! Cada minuto com paixão!
Ouve! Seu coração sabe para onde ir!


quarta-feira, 14 de março de 2012

sem título

sem titulo
sem nome
sem explicação
um espasmo percorrendo a espinha
o pulsar das pernas formigantes
a nuca em chamas
as mãos trêmulas
as palavras ausentes
é isso e nada mais
sem explicação

quinta-feira, 1 de março de 2012

Mágoa

S.F.
1.Pedaço de carne mal mastigada
que desce garganta adentro rasgando e não é digerida rapidamente.
2.Sopro dentro das veias que impõe soluço ao coração.
3.Perfume velho que teima em exalar a essência do que já foi.
4.Medo de olhar pra frente e seguir seu caminho.


Esquina

















Não senti.
Passei rápido para não demorar o tato.
Sua mão segurou meu braço.
Não pude olhar nos olhos.
Fixei o olhar na camiseta azul.
Desbotada conhecida.
Troquei rapidamente palavras automáticas e segui
até o bebedouro onde dois goles de água entalaram na goela.
O tranco me fez encarar a realidade.
Não tive tempo de enganar.
O choro veio
A lágrima não.
Ele saiu em silêncio.
Nunca mais o vi.

sábado, 25 de fevereiro de 2012

Lope de Vega


Desmayarse, atreverse, estar furioso,
áspero, tierno, liberal, esquivo,
alentado, mortal, difunto, vivo,
leal, traidor, cobarde, animoso,

no hallar, fuera del bien, centro y reposo,
mostrarse alegre, triste, humilde, altivo,
enojado, valiente, fugitivo,
satisfecho, ofendido, receloso.

Huir el rostro al claro desengaño,
beber veneno por licor süave,
olvidar el provecho, amar el daño;

creer que un cielo en un infierno cabe,
dar la vida y el alma a un desengaño:
esto es amor. Quien lo probó lo sabe.

quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

Tempo de muda

A musica repete pela enésima vez
presto atenção nos vultos do metrô
o passos
o percurso
a escada
penitência escolhida
como se a dor na musculatura me lembrasse que estou viva.
Foi só mais uma casca.
mais uma...
a pele fina ainda inspira cuidados.

domingo, 5 de fevereiro de 2012

Meia hora






Meia hora de atenção
Meia hora de dedicação
Meia hora consumida em nada
Meia hora concedida aos pés
Meia hora dormida
Meia hora roubada
Meia hora perdida
Meia hora de história
Meia hora é pouco
Meia hora é o que basta, o resto é consequência.

quinta-feira, 19 de janeiro de 2012

Ouvindo Drexler














"Cada uno da lo que recibe
Y luego recibe lo que da,
Nada es más simple,
No hay otra norma:
Nada se pierde,
Todo se transforma.
El vino que pagué yo,
Con aquel euro italiano
Que había estado en un vagón
Antes de estar en mi mano,
Y antes de eso en torino,
Y antes de torino, en prato,
Donde hicieron mi zapato
Sobre el que caería el vino.
Zapato que en unas horas
Buscaré bajo tu cama
Con las luces de la aurora,
Junto a tus sandalias planas
Que compraste aquella vez
En salvador de bahía,
Donde a otro diste el amor
Que hoy yo te devolvería"