quinta-feira, 22 de julho de 2010

Álbum de fotos

     Eu tenho poucas fotos de infância.

   Algumas do meu primeiro ano, depois outras poucas já na escola. Os registros mais contínuos só começam mais tarde já durante a faculdade. Minha sorte é que tenho boa memória. Não para nomes ou datas, para isso sou inútil, mas guardo bem imagens, cheiros e sons que não sei se um dia se apagarão como o cd de backup que tentei abrir outro dia.

   Hoje a memória ainda é boa mas, seja pela falta de tempo, pela falta de espaço livre ou pela excessiva confiança na atual tecnologia que registra tudo tão facilmente, certos sentidos vão ficando preguiçosos e muitas vezes é fácil ceder à tentação de fotografar compulsivamente e sem alma algum evento ou situação. É um exercício e quero evitar essa tentação acreditando que mais vale ver, ouvir e sentir o momento do que guardar alguns megas no computador.

   Tenho desde a infância muitas imagens reais ou nem tanto gravadas na memória. Meus sentidos registravam as informações e montavam o quebra-cabeça. Foram tempos comuns - família, ferias, escola, algumas viagens... Quando criança, andar pela cidade, esse universo infinito e misterioso, já era uma aventura. Se em trânsito, decorava os caminhos frequentes e gostava de deitar no banco do carro e imaginar o trajeto só pelo seu movimento. Se em casa, minha ou de outros, me chamavam a atenção cheiros, texturas, barulhos, luzes e formas.

   Cresci circulando pelos bairros do subúrbio, fiz alguns marcantes passeios ao Centro, aprendi a me virar sozinha andando de ônibus pela cidade, passei pelo túnel árido e psicodélico que foi estudar no Fundão e hoje moro em outro subúrbio, o antigo, o das chácaras da franja dos morros à beira mar onde nasceram os bairros da Glória, Catete e Flamengo de quando a cidade começou. O Rio é cheio de cidades que se juntaram com o tempo. Costuradas pelas linhas de trem ou de bonde, desenterradas dos morros ou subindo neles. Durante esses anos, sem máquina fotográfica, guardei muitas imagens destas cidades e formei meu banco de sentidos pessoal.

   Irajá me remete ao cheiro da casa da minha avó, uma casa de fundos com um bebedouro de pássaros feito de cimento no chão. O armazém antigo com estantes de madeira escura que cobriam as paredes, o cachorro traiçoeiro, o portão, as ladeiras, a abelha e o ferrão atrás da orelha, os retalhos de costura que caiam aos pés de minha avó onde eu muitas vezes brincava.

   São João de Meriti, bairro de outra parte da família, com casas quase rurais e ruas de lama. Lembro de uma farpa no dedo à beira da Dutra num dia de chuva, as brigas de família, tia Leonor e seus gatos me parecia a única pessoa lúcida da família. O picolé de limão, o iogurte de maçã, o cheiro de mofo, o piso de cimentado vermelho e o telhado à vista. Não lembro se tinham morcegos. Mas o medo ficava por conta de uma boneca da Mônica, design antigo, bem pontuda, que pertencia a uma de minhas tias.

   Cascadura, lá ficava o dentista [pânico!], a loja de eletrônicos do meu pai, o bar da rua Sidônio Paes com seus bancos giratórios de estofado vermelho brilhante de onde eu tinha a vista parcial da cozinheira através do passa pratos. Lá serviam banana split, ovos cor de rosa, pernil assado na estufa. Numa rua ladeira acima ficava a casa onde diziam, nasci. Mas isso eu não lembrava, já naquela época.

   Madureira, cortada em três pelas linhas dos trens. Linhas e linhas, mar de linhas e passarelas que sobem e descem. Um calor insuportável, ruas sujas, poucas árvores, o comércio para tudo o que era necessário, lista de material escolar, fantasia de carnaval, presentes de natal. Dois cinemas, onde eu vi os filmes dos Trapalhões, Guerra nas estrelas e ET.
  
   Na Praça Seca, outro bairro vizinho a Vila Valqueire, havia outro cinema, o Baronesa. Mas este virou logo IURD. Lá vendiam aquelas balas Boneco.
  
   Vila Valqueire, onde cresci, com suas ruas cheias de árvores e com nomes de flor. Hortências, Margaridas, Lilazes...Um oasis com casas de centro de terreno, garagem de um lado, varanda de outro e santo de devoção da família na fachada. Depois aprendi que eram Kitch. Mas pra mim era um padrão familiar que fazia do bairro o meu lugar. Na vila onde morei, haviam algumas casas ainda em construção onde eu brincava de labirinto. Lembro do cheiro dos tijolos e do cimento já daquela época. O asfalto, recém aplicado, ficava grudado nas rodas do meu patins. Tombos e tombos. Tem um especial, que me lembro como se fosse um filme em câmera lenta, em que vejo o chão chegando mais e mais perto até tudo ficar preto. O colégio, onde eu era completamente nerd, enquanto os amigos iam ver Robocop em Madureira eu queria ver Mon Oncle e Blue Velvet no CCBB recém inaugurado no Centro a uma hora de trajeto.

   Veio a faculdade, passei a circular entre Vila, Fundão e Centro. Outros subúrbios. Del Castilho, Abolição, Bonsusesso, Olaria... Bairros mais judiados que os da artéria da Central, mas muito ricos com suas casinhas e sobrados antigos, coloniais e art deco, completamente desfigurados e que eu tentava recompor com a imaginação. Do Fundão guardei as longas viagens diárias de ônibus, carro ou a pé, o cheiro do Abricó, os flamboyans, o prédio da Reitoria e suas histórias, o cheiro das salas com armários enormes que cabiam duas pessoas dentro. Os amigos. O Centro era o ponto de conexão com o resto do mundo. Físico e intelectual. A arquitetura, a cultura, a diversão, a bagunça, a pressa, o trânsito, os terminais de passageiros. Eu andava olhando pra cima quase o tempo todo. Faço isso até hoje. Já caí, já topei com fradinho e já fui muito xingada pelos apressados.

   Hoje mantenho o esforço da observação mas vou bem menos aos subúrbios de minha criação. Me acomodei no meu novo quintal, Flamengo, Catete, Largo do Machado, Laranjeiras, bairros com muito mais estrutura urbana, mais equipamentos, comércio, transporte, investimentos, fiscalização, mas que também possuem sua desordem própria, seus personagens, seu cenário, dignos de muita observação e fotografia. Ando de máquina em punho mas me divirto muito mais não fotografando. Só observo, escuto, respiro.

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